Santa Selfie que nos dá força para resistir à pandemia

A selfie é a verdadeira obra de arte popular. É um autêntico autorretrato popular. E a autêntica forma em que os povos fazem obras de arte. A selfie e uma arte específica dentro das artes visuais e cada selfie postada é uma obra de arte, eminentemente e autenticamente popular. A selfie é uma arte porque tem uma maneira combinada de ser feita, umas regras de produção e exibição, e um público, quer dizer cumpre com todas as regras de uma arte: regras, materiais, público. Claro, as artes sempre estão rompendo essas regras, para isso é que são artes.

A selfie é um autorretrato fotográfico que cada pessoa que tiver um smartphone, telefone celular ou portátil com câmera, pode ser feito e se faz, majoritariamente, estendendo seu braço com o celular na mão, com a distância suficiente para que o autorretrato seja entendido. Às vezes, o braço é expandido por dispositivos mecânicos como os “bastões de selfie” ou a selfie é feita usando espelhos que ajudam na produção.

A regra que constitui esta arte é que deve ser feita, capturada, tomada, tirada, por quem é retratado. Isso fica claro no relato que faz Sebastião Kohan Esquenazi: “…encontrei dois turistas tirando uma selfie não sei em que lugar, não sei si era A Boca, Paris, Teotihuacán ou a ilha Elis, ou nenhum, mas eu disse a eles muito gentilmente se eles não queriam que eu tirasse a foto deles e a resposta foi redondamente negativa.”1. A resposta negativa ao Sebastião é a resposta positiva à arte da selfie: si te tirar outra pessoa, que não faz parte daqueles que irão aparecer na selfie, já não e selfie, é foto. Os materiais de arte estão claros: a câmera do celular, aplicações adequadas e algumas ferramentas que ajudam a estender mecanicamente o braço e / ou a mão. E por isso que as fotos Polaroid de Mr. Bean são um antecedente da selfie, mas não são selfies. O público da selfie também existe, são os contatos disponíveis nas redes sociais e aplicações de comunicação. A seleção da selfie a ser publicada para expor-se, é parte integrante da arte de uma selfie, dada a possibilidade de tirar tantas selfies quanto seja possível no mesmo momento ou situação.

Existem longas e interessantes discussões e descrições sobre o que é arte e, especificamente, arte popular. Não há uma definição consensual, mas posso dizer que existem várias artes populares: arte feita pelos povos para si mesmos com suas próprias ferramentas; a arte feita por artistas vindos de setores populares, mas que se distanciaram desses setores e fazem a arte como forma de recontato ou serviço ao povo e para o povo e, finalmente, a arte feita pelas elites para si ou para os setores populares e que é adotado como seu pelos setores populares. É tão arte popular um artesanato de um povo indígena, usado naquele mesmo povo, como um mural de Rivera ou Mon Laferte, feito para o povo ou a nona sinfonia de Beethoven, feita para a elite, mas que não só foi integrada a história da arte, por outro lado, seus movimentos são parte do patrimônio dos setores populares, ou seja, uma série de TV feita pelas elites para consumo popular e que os setores populares se apropriam de tal forma que incorporam ao seu repertorio frases, ditos e personagens descritivos de formas de ser.

São poucas as artes genuinamente populares, em geral todas as artes requerem uma certa prática, um certo aprendizado, uma certa dedicação que as torna excludentes, mesmo que sejam artesanatos. Essas exclusões iniciaram ou iniciam como gênero: quem pode fazer o quê e onde. Nem todo mundo vai ter um forno de barro em casa, nem utensílios para pintura a óleo, nem tempo para investir em praticar canto, escultura, fotografia, etc. A certa altura, a arte exige um certo investimento que limita o que é popular, no sentido de amplitude e autogestão do termo, de seu alcance: No final do século, surgiram certas artes que efetivamente aumentaram a popularidade autêntica de seus trabalhos: o hip hop e o graffiti como exemplos. O hip hop exigia pouquíssimas ferramentas e quase nenhum palco no início, mais punk do que punk, bastava o desejo, um pouco de rua e certa, não muita, capacidade de rimar. A popularidade não estava limitada ao tema, ao ambiente, mas que se ampliava no “quem”; neste caso, quase qualquer pessoa. O mesmo no graffiti: bastava comprar o spray, sair para a rua e escrever ou pintar ou aquilo que era ambas coisas ao mesmo tempo. Mas também há seus limites, sair para a rua com tudo o que isso implica em termos de gênero e faixa etaria.

A selfie é genuinamente popular em todos os aspectos, é redondamente popular: qualquer um que tiver um celular com câmera pode fazer. A técnica, a prática, a arte é aprendida rapidamente. Os materiais fazem parte de um aparato complexo, mas simples, ao mesmo tempo amplamente disponível na maior parte do mundo, com diferentes níveis de profundidade e alcance, mas em quase todo mundo. Apesar de tudo, os limites de gênero e idade têm menos peso do que em outras artes. Você pode tirar a selfie onde quer que esteja e seja quem for.

O autorretrato estava limitado, nas artes visuais, a pessoas profissionais da arte, na pintura, na fotografia, na escultura, etc. A fotografia ampliou a quantidade e a capacidade de quem poderia se auto-retratar, assim como o cinema 8mm e o vídeo na época. Mesmo assim, as limitações técnicas do desenvolvimento e da edição, colocarom limites nessa amplitude, limites que o selfie parece ter explodido. Têm havido muitas tentativas de quebrar esses limites, desde que foram inventadas as ferramentas para criar meios de comunicação (de massa): a imprensa, a imprensa popular, anarquista, feminista e rebelde em geral. O mesmo no rádio e no cinema, no que diz respeito à publicidade, a Billboard Liberation Front propôs na época que todas as grandes superfícies publicitárias fossem para todos. A cada proposta do capital tem havido uma resposta e recriação popular, infelizmente devemos escrever “e vice-versa”.

É verdade que a selfie faz parte do capitalismo da tela. Que é um subproduto da pesquisa e aplicações de reconhecimento facial, que é mais um mecanismo de extrativismo de dados. Certo. O que não se vê nisso é que a rebelião popular, a tergiversação popular, a resistência popular estão sempre no Poder (o sistema de dominação / violência que sempre tenta nos subjugar2) e contra o Poder, mesmo com as ferramentas do mestre. Porque na realidade não existe nenhuma ferramenta do mestre: O trabalho, quem trabalha, as trabalhadoras, os trabalhadores são sempre aqueles que fazem as ferramentas, as constroem, as elaboram. Não existem ferramentas do mestre porque ele mal tem a capacidade de transformar as ferramentas que os trabalhadores criam em aparatos de repressão e destruição. Os povos tomam, alteram, distorcem, adaptam, manipulam à sua vontade tudo o que o Poder organiza na sua tentativa vã e permanente de subjugar os povos que sempre escapam. Daí a necessidade permanente de Poder de criar novos meios de comunicação, que agora incluen os formatos de aplicações e redes sociais virtuais.

A selfie foi sequestrada pelos povos e nela os povos falam coisas, se mostram uns aos outros, dizem “aqui estou”, “é assim que quero que me vejam”, “isso eu quero mostrar ou dizer sobre mim e o que me rodeia”. A selfie como imagem e como retrato mostra aos povos como eles querem se mostrar, para quem querem se mostrar, por suas próprias mãos e nos seus próprios termos. E as marcas de orgulho e autoestima que isso deixa não é um resultado desejado para a elite dona de aplicativos. Mas está aí: o orgulho de mostrar o que somos e como somos, mesmo quando isso é uma postura. A selfie é também a nossa autobiografia popular e pessoal, a nossa história em imagens, uma publicidade autogerida de quem somos e queremos que saibam quem somos e é, sobretudo, a construção autogestionária da nossa memória gráfica, nossa própria galeria e museu.

Há muitas e interessantes obras, textos, sobre imagens, selfies, autorretratos, arte popular, muitos deles disponíveis para qualquer mecanismo de busca na internet. De todas as possibilidades de interpretação que as selfies têm, aqui les deixo uma proposta para ler o que fazemos na pandemia e quarentena: nos vemos mais na tela do que pessoalmente.

Pelao Carvallo, pandemia de 3 de abril de 2021

Agradeço e dedico a todas aquelas pessoas que me inspiraram com suas selfies, verdadeiras e autênticas obras de arte popular. Foi escrito a meio caminho entre a teoria da arte e a crítica anarquista das artes e das artes populares em particular. Nesse sentido, segue o caminho que Emma Goldman, Read, Proudhon abriram há muito tempo, e que as pessoas e os coletivos continuam. Agradeço a inspiração e o incentivo de tantas pessoas e especialmente de Johanna González, Amaranta Rocío, Sebastian Kohan Esquenazi, Pamela Avellana Mella, Negri Garcete e tantas outras pessoas queridas.

1 Comentario no Facebook a posteo “Lo de las selfies avanza, sigan enviándome sus selfies que me sirven de inspiración y objeto de estudio”, de Pelao Carvallo, data 31 de março de 2021 às 14h25. https://www.facebook.com/pelao.carvallo/

2Aqui eu explico essa ideia: https://www.clacso.org/anarquismo-en-tiempos-de-punkdemia/